Uma coisa que a
humanidade aprendeu a fazer foi sistematizar. Sistematizamos para garantir o
mínimo de contratempos, de falhas, de parafusos fora do lugar. Sistematizamos
para que no fim do semestre sejamos reprovados por nota e não por falta, porque
ao que parece o coeficiente de rendimento cai menos. Até a morte funciona
assim, do Holocausto na Segunda Guerra às filas dos hospitais públicos, das
esteiras das fábricas onde os trabalhadores morrem lentamente montando peças
que nem sabem para que servem à pinga boliviana que o seu Zé vende no boteco
dele, que deve realmente ser uma ferramenta de extermínio, afinal quando a bola
sai no meio do jogo de futebol, você nunca ouve o cara da publicidade dizer
nada sobre cachaça da Venezuela, ou passa por um anúncio de beira de estrada
com o Evo Morales segurando uma garrafa.
Sistematizando
estabelecemos uma rotina. A eterna queda de dominós diária, na qual a primeira
peça que empurramos é o ato de arremessar o celular na parede por ter
despertado assim tão rápido e que leva a um conjunto de outras ações que se não
forem seguidas dentro de um padrão podem culminar com você correndo atrás de um
ônibus no meio da chuva com uma camisa branca toda suja de café, mesmo que não
goste de café.
Rotinas são
importantes. O mundo viraria uma bagunça bem pior do que um cara todo sujo de
tinta dançando quadradinho em cima de uma picape parada em frente a um posto de
combustíveis. Quando sabemos o que temos de fazer, podemos nos planejar para
que tudo que está previsto para acontecer aconteça e assim, garantir que
consigamos chegar em casa no fim do dia odiando quem come cheetos de queijo
dentro do ônibus com ar-condicionado, mas ainda sim com a cabeça em cima do
pescoço e em plenas condições de arremessar o que sobrou do celular na parede
novamente quando o sol raiar no outro dia.
O problema disso
tudo é a tendência que a rotina nos impõe de parecermos cada vez mais com
robôs. E que autômatos mais frágeis nós somos. Adoecemos mais fácil do que uma
máquina que queima um circuito, com um conserto por vezes muito mais demorado e
trabalhoso. Temos sentimentos para dosar. Sentimos raiva, alegria, fome (não
que fome seja exatamente um sentimento), vontade de escrever um aviso numa
cartolina e colar na cabine do colega de trabalho ao lado pedindo por favor que
o mesmo compre um fone de ouvido que faça com que só ele e não a sala toda
tenha que ouvir a coletânea de Summer Eletrohits todo dia, embora para fazer o
cartaz eu teria que passar pelos corredores com a cartolina debaixo do braço e
eu acho que ele é muito amigo do cara que tem as gravações do circuito interno
de segurança. Sentimos medos, frustrações, traumas. Muitas coisas se somam
nesse turbilhão de ideias que é a mente humana e que vão de algum modo
interferir na rotina que a queda de dominós deu início quando o dia começou.
A rotina também traz
com ela uma certa dificuldade com eventos inesperados. E assim tudo vai transcorrendo
como o habitual na sua manhã até que você distraído pisa com o sapato novinho
em um cocô que espera de coração, seja de cachorro, descobre que comprou
biscoito integral para o lanche sem se dar conta disso e além de ser mais caro
acha que o pessoal não vai gostar, conhece pessoas de todo tipo, cai de avião
próximo a alguma ilha deserta e distante da civilização, descobre o que te faz
falta. Temos então de usar toda nossa capacidade de adaptação, temos uma nova
rotina a estabelecer e com a qual brigar e que brigamos por valer a pena o
resultado final, seja ele sobrevivência ou um sapato que não cheire a cocô. Por
isso a vida deve ser feita de rotinas, rotina para se seguir e rotina para
fugir. Porque se não for assim, vou preferir ser o C3PO e ficar escondido em
algum planeta deserto, sem o boteco do seu Zé por perto para fazer seresta até
as 3 da manhã do domingo e sem o cara dos fones de ouvido na cabine do lado.